Nas margens do lago do Maracu, entre Viana, Penalva e Cajari, onde a Aldeia dos Guajajaras ainda sussurra histórias ancestrais, persiste a memória de Ana, a linda índia de Viana. Antes mesmo dos colonizadores ousarem chamar a terra pelo nome que herdaria da distante Viana do Castelo, Ana já era senhora de um diploma sem saber — o saber da vida, da resistência e da palavra não dita.
Conta a lenda que Ana, encantando um colono português, fugiu para as matas próximas à ilha de Sacoã. Durante dias, a natureza foi seu único abrigo até que um caçador a avistou e gritou para o mundo: “Eu vi Ana!”. A voz dele rompeu o silêncio, como o grito que ecoa no peito de tantos que, mesmo sem saber, carregam a dignidade de um direito não reconhecido.
Recordo-me das palavras do maranhense Gonçalves Dias, aquele que eternizou a saudade e a luta em versos:
"Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá."
Na nossa terra maranhense de encantos, mas de tormentos estrangeiros, Ana representa a resistência contra a perda e o esquecimento.
Em "Índios", Renato Russo revela a dor de um passado marcado pela perda e pelo esquecimento: “Quem me dera ao menos uma vez / Como a mais bela tribo / Dos mais belos índios / Não ser atacado por ser inocente”.
Ney Matogrosso, maravilhoso (e magnífico) em si, cantou: Minha vida, meus mortos / Meus caminhos tortos / Meu sangue latino /Minh’alma cativa”.
Em síntese, tratou Ney nesse trecho de um povo que não esquece seus mortos nem abandona seus ritos, mesmo quando seja necessário romper tratados e lançar gritos (e seus anseios) no espaço.
Um sonho recente, sombrio e perturbador, me trouxe uma caixa de isopor contendo duas crianças: uma silenciosa sob a superfície do apagamento, da subutilizacao ( se a língua portuguesa me permite) de pessoas, e outra lutando, resistindo à vida que insiste em se preservar. Não pude evitar a metáfora cruel — assim são muitos hoje, presos pela dor de sua própria preservação, em caixas invisíveis, lutando para sobreviver em ambientes que parecem lhes negar até a dignidade mais elementar.
Essas colocações também nos lembram que a saudade não é só do lugar, mas também do que nele viveu, do que se perdeu e do que insiste em resistir. Ana, mesmo em sua fuga, simboliza essa resistência ancestral contra as forças que tentam calar vozes e apagar histórias e esforços que deram super certo.
Hoje, no cenário das novas tecnologias, das Universidades que reconhecem esforços de anos de luta por um diploma; e da justiça que reconhece direitos, ainda há quem não compreenda o valor da assinatura de uma matéria jornalística, o direito ao reconhecimento à propriedade intelectual, e do respeito à identidade.
Como Ana, muitos profissionais lutam para não se perderem em meio à pressão, às suposições infundadas e às tentativas de apagamento.
Poderia até supor que o caso de Ana não difere dos tantos outros que também acabaram mal, marcados pela dureza de um tempo rude e pela precipitação de quem tenta julgar sem ouvir, sem principalmente ouvir o anseio e as dores do outro.
Ana chorou, Ana resistiu, Ana é a voz que insiste para que não deixemos o passado apagar as histórias de quem constrói o presente, com todas as suas próprias dificuldades pessoais.
Que possamos ouvir o grito do caçador e ver Ana além da lenda, reconhecendo em cada luta o valor da palavra, da justiça e da dignidade.
Falo sobre a repetição histórica da injustiça, do grito abafado que clama por reconhecimento. A história de Ana que, mesmo em seus tempos remotos, já reconta isso — e nós, hoje, não podemos ignorar.
Em tempos de inteligência artificial e das Universidades, fortes que são em sua essência, desde o nascimento do conhecimento científico, ditam ritmos para o saber, Ana, a índia de Viana, permanece como um símbolo ancestral e silencioso, como um diploma forte e presente, de direitos ainda por desvelar. Ana, porém, na luta pelo amor profundo em sua propria identidade, mesmo sem as palavras eruditas que hoje a academia oferece, resistia.
Ela chorava, sim, mas sabia que seu lamento ecoava as dores de muitos que, ao longo da história, foram silenciados pelo rude colono, pela grossura do tempo e pela precipitação daqueles que tentam subutilizar os ofícios profissionais.
Essa crônica é um convite para enxergarmos Ana em cada trabalhador, em cada ser que resiste, mesmo quando não sabe que carrega em si um valor identitário, um direito, uma voz.
Que a esperança resista, que o espírito alegre continue sendo o bom remédio contra os ossos secos da angústia.
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